texto de Neiva Bohns 2003


dos objetos nascem objetos dos objetos nascem objetos dos ob


A ação de transformar artefatos da indústria do plástico em objetos artísticos, presente no trabalho de Lia Menna Barreto, reativa a discussão sobre uma série de elementos próprios do território da arte. Em primeiro lugar, está a opção por usar coisas já existentes, ao invés de fabricá-las – uma prática inaugurada por Marcel Duchamp quando criou o primeiro ready made. Tempos depois, o mesmo artista conceberia o ready made retificado, que nada mais era senão o ato de interferir no objeto pronto. No caso em questão, também a artista não se contenta em reapresentar o objeto industrial da maneira como veio ao mundo. Tampouco cria em redor dele uma aura de objeto intocável. Ela os “prepara” para a apreciação estética, de uma maneira totalmente dessacralizada. Claro que há um processo de fabricação de objetos, mas não tanto pela conformação da matéria, como pela sua deformação. Em outras palavras, o que ela fabrica é uma nova relação entre os objetos, por sua vez já transfigurados. Faz com que as coisas do universo industrial, com suas características mais evidentes desfeitas, desenhem coisas para o universo artístico. E isso a coloca no território da criação de linguagens, de fundamental importância para a arte contemporânea.

Em segundo lugar, há que se considerar que suas escolhas incidem sobre objetos inteiramente despretensiosos. Pelo contrário, a artista prefere trabalhar com uma coleção de coisas do universo kitsch, lúdicas por excelência, sem qualquer vocação para a funcionalidade. Seus objetos não são “sérios”. Nem necessários. São divertidos, engraçados, esquisitos. O dado bem humorado se acentua ainda mais quando se vê o resultado da ação da artista sobre eles. Ela os amassa, perfura, derrete, com a mesma determinação dos artistas plásticos que trabalham com materiais convencionais. Em tudo, vê linhas, formas, cores, texturas, e gosta de sentir a densidade e a resistência dos materiais. Sua ação é física. É, para ela, quase impossível aproximar-se dos objetos pela via das relações conceituais. Por esse motivo, age tão vigorosamente sobre eles, alterando suas formas, estruturas e contornos. Em casos mais recentes, seu procedimento envolve compressão de massas e a conseqüente indissociabilidade dos corpos. Ou seja: a quase devolução do objeto ao seu estado puramente matérico.

Às vezes Lia Menna Barreto acentua a ausência de um esqueleto estruturado no corpo de bonecos de brinquedo. Desconjunta, amarra ou inverte suas partes. Em outros casos, sua ação é mais incisiva. O objeto pode ter sua integridade física alterada de maneira irreversível ao ser atravessado por algum instrumento de alto teor destrutivo (como no caso de um ferro de passar roupa). Mas isso nunca faz parte de um discurso sentimentalista sobre a violência contra seres humanos ou animais. A artista está imbuída de outros interesses, que se referem exclusivamente ao campo da arte. É a materialidade das coisas, e sua potencialidade expressiva, que lhe interessa.

Invertendo a lógica do objeto industrial, feito para seduzir pela aparência externa, às vezes opta por revelar seu lado do avesso, com todas as costuras e emendas à mostra. Já fez isso muitas vezes, numa atitude irônica diante dos símbolos da ingenuidade infantil, como coelhos de feltro. Na atual exposição da Bolsa de Arte, a artista apresenta Cabeças Viradas, uma obra que revela o lado de dentro dos objetos. Mostradas pelo viés que deveria ficar oculto, as cabeças de bonecas deixam ver expressões faciais transfiguradas, vagamente humanas, espremidas no pequeno espaço, antes externo, que agora se internalizou. A conjunção dessas formas esféricas ocas, de anatomia pouco funcional, transforma um dos cantos da sala de exposição num lugar misterioso, cheio de olhos escondidos em casulos. Noutra parte da sala está um trabalho que atrai os sentidos da visão e do tato pela quantidade de cores e de texturas diferentes. A Pintura de Taiwan é uma trama “barroca” inteiramente feita de objetos industriais, que guardam o gosto pelas cores e tons chamativos dos produtos autenticamente made in China, que pululam pelo mundo afora.

No Desenho de Lagartixas, uma grande quantidade de objetos idênticos, fundidos num corpo único, forma arabescos que se desenrolam nas paredes e no chão. Nesse caso, a artista faz questão de acentuar o caráter decorativo da peça, feita de células geométricas que poderiam se repetir indefinidamente, seguindo uma lógica muito conhecida pela arte popular (que lembra o processo artesanal de fabricação das rendas, dos bordados e das colchas de crochê, crescendo sempre a partir da associação de partes idênticas entre si). Por outro lado, o caráter expansivo dessa proposição faz pensar no crescimento dos organismos vivos. De maneira diferenciada, sob forma de blocos compactados de matéria fundida, tramas de pés e mãos de bonecos de plástico, reduzidos a um plano único, pontuam o espaço da sala de exposições.

O empreendimento da artista é claro: ela percorre o caminho inverso da fabricação e distribuição de mercadorias banais, e, partindo do material industrial, re-cria objetos para a pura fruição estética. Em suma, muda o estatuto e subverte a função dos artefatos criados para o agrado fácil e para o comércio em larga escala. Ao libertá-los do destino que lhes era reservado, devolve-lhes a possibilidade de assumirem novos e surpreendentes sentidos. Na Bolsa de Arte, criou desenhos orgânicos, dotados de vida própria, que se espalham pelas paredes, alterando o ambiente físico da sala de exposições, como seres em plena simbiose com o meio em que podem existir plenamente. No auge de sua carreira artística, Lia Menna Barreto não se deixa seduzir pela retórica do realismo fantástico, ou ainda do encantamento maravilhoso (ou tenebroso) que seu trabalho poderia assumir, se fosse sua intenção buscar uma estética tipicamente “latino-americana” ou “brasileira”, como o fazem tantos outros artistas. Suas investigações formais seguem um fio condutor perfeitamente coerente, em que as inquietações se sucedem umas às outras, buscando soluções para os problemas que os trabalhos naturalmente sugerem. Assim, as respostas artísticas surgem sem pressa, no ritmo de quem conhece os segredos das raízes que espalham seus desenhos silenciosos.

Neiva Bohns
Porto Alegre,14 de agosto de 2003



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