Maria Ivone dos Santos 1998


Efemérides de Lia

(engendramento de um calendário afetivo)

Efemérides. [ Pl. De efemérides] S. f. pl. 1. Diário, livro ou agenda em que se registram fatos de cada dia. 2. Registro dos acontecimentos realizados no mesmo dia do ano em épocas diferentes. 3. Anotações ou enumeração dos acontecimentos sujeitos a cálculos e a previsão durante o ano. 4. Título dado na Antiqüidade às obras que contam, dia por dia, a vida de uma figura ilustre 5. Bras. Notícia diária.

um dia

Lia traçou um propósito que consiste em trabalhar todas as noites, com o que resta de energia do dia, utilizando os materiais disponíveis no
seu atelier. Cada noite ela engendra uma boneca. A primeira dama dessa série tece uma ligação com os trabalhos anteriores, pois a pose evoca ainda uma certa narratividade, ao mesmo tempo que introduz uma despreocupação com o acabamento e uma certa precariedade. A criação é o que é....simplesmente a partir desta sobra de tempo que a personifica.

sete dias

Os dias se sucedem e estas bonecas passam, nesta trama regular, a formar um grupo. Longe de estabelecer traços de familiaridade, cada qual se mostra na sua singularidade e diferença. O que permanece é a força expressiva que se concentra na face de cada uma. Acontecimentos vivenciados, pensamentos, pensamentos que povoam o dia a dia de Lia, parecem ser naturalmente incorporados aos gestos e materiais que as constituem. O tamanho que possam ter parece determinado por esta regra do início, que as condiciona a disponibilidade do dia em questão. Quase sempre trazem essa proximidade com a mão, com o feito à mão, por isso impossível de ser repetido. Precariedade que colocaca à partir dessas características, outras questões: Qual seria a função simbólica desta sobra de energia? O que encontramos quando não buscamos nada?


um mes

Com o passar do tempo, a unidade de cada persanagem faz-se massa que passa a povoar um espaço maior.Personificações que talvez alimentem e mantenham vivo um mesmo assunto. O que seria uma boneca senão um objeto relacional, ( Wnnicot) com os quais estabelece-se uma cadeia de de transferências afetivas? O poder mágico que estas bonecas suscitam, não encontra-se somente na escolha de uma determinada situação a figurar, mas sim nos gestos construtivos, que ligam elementos díspares entre si. Um mês desta atividade rotineira, pode alternar horror e ternura. Como se um único assunto pudesse se desdobrar em tantas realidades instaurando um tempo mítico num grande livro de leituras da vida e da arte. Se num determinado grupo aparece repentinamente uma boneca feita em cartão à partir de colagem de orgãos extraídos de revista, podemos de repente pensar em uma homenagem à dadaísta e irreverente Hannah Höch ( A arte parece um milagre que desabrocha como uma flor de um espírito concentrado). Se mais adiante nos deparamos com um modesto rolinho de pano, onde apenas a disposição de alguns pontos bordados nos indica tratar-se de uma fisionomia, reconhecemos no mesmo, o brinquedo infantil perdido e restaurado na sua fragilidade. Ou bem mais adiante, um pequeno corpo de veludo negro, monstruoso e grave pode nos evocar o mistério de uma cerimônia voudu. É precisamente neste vai e vem entre inocência e perversidade, entre intencionalidade e inconsciência, que emerge o que poderíamos chamar humanidade em crise constante, e às voltas com a crise de seu corpo. Num futuro talvez não muito longínquo, com o advento de próteses cada vez mais presentes, e as alterações da engenharia genética, o que acontecerá com a humanidade e seu corpo? Que tipo de corpo a humanidade quer criar para si mesma? Estes comentários e questões juntam-se a muitas outras leituras possíveis que estes objetos noturnos suscitam.


vários meses


Dispostas lado a lado, no chão do atelier da artista, as efemérides de Lia, concentram pensamentos e engendram uma textura que talvez nos diga que viemos ao mundo como seres múltiplos mas que saímos como um, e é precisamente através da atividade lúdica do faz de conta, que podemos ao mesmo tempo ter distanciamento e liberdade em relação ao que denominamos “real”. A careta, a máscara, a paródia e a simulação são atos que tornados públicos, erigem-se contra uma representação aceita do real. Se o sentido se desdobra de um personagem a outro, esse espaçamento entre personagens age de maneira a formar um grande texto. As bonecas arranjadas em grupos, por semanas, meses, ocupam o espaço físico do atelier. O atelier torna-se desta maneira habitado. Se esse povoamento causa-nos espanto e estranheza, ele tende a ocupar também o “espaço mental” da artista. Afinal de contas, esse compromisso voluntariamente assumido de engendrar uma boneca por dia investe-se de uma gravidade cumulativa cada vez mais pesante no seu cotidiano. O relato temporal que cada personagem incorpora encontra um equivalente espacial quando colocado na trama do calendário. Estranha coleção constituída pela persistência do motivo que ao mesmo tempo que denuncia um estado de ânimo da artista, presentifica e prolifera-se ao ponto de causar desconforto.
Mais um dia...Um mundo de imagináveis duplicados em possíveis.
Por outro lado, podemos nos perguntar qual o devir deste conjunto na passagem do espaço privado do atelier para um espaço público, uma galeria, ou uma sala de museu. Não pressentir-se-ia de alguma maneira o olhar do espectador também como um “duplo” destes seres fantasmáticos? Outras questões emergem. A densidade demográfica desta ocupação crescente, pode variar dependendo do território que a contenha. Dependendo do espaço onde sejam montadas, a unidade e o particular podem perder-se na textura de matérias e cores, ou ao contrário, criar zonas de espaçamento e de distenção que isola estes seres em quase ilhas.
..............................continua..........................

Maria Ivone dos Santos, julho 1998