texto de Constança Ritter





Calendário de bonecas



A Lia viu um vaso cheio de espadas de São Jorge e disse ai, que coisa mais feia. O vaso era desses de cerâmica esmaltada que já nascem horrorosos e não melhoram com o tempo, dentro dele espadas em uma densidade sufocante. A Lia concluiu que a planta morava naquele vaso há muito, muito tempo, e que alguém a cuidava. E pensou, quem será que rega as espadas de São Jorge e lava as lajes do pátio, quem será que costurou as cortinas que o vento sopra para fora das janelas. A Lia gostaria muito de saber quem é que mora lá dentro.

Porque é no dentro das coisas, no avesso do que é exposto, que a Lia pensa. É nessa parte lacrada, no escuro do interno, que ela trabalha vigorosamente: ao colocar o lado de dentro para fora, o lado de dentro não deixa de ser dentro, ele simplesmente traz para dentro o que sempre pareceu estar fora. E fica tudo assim, um imenso interno.

Descobrir o que é o dentro é que não é nada fácil: o dentro de uma boneca, por exemplo, qual é? Se a boneca for dessas de plástico, que a Lia tanto gosta, o dentro é ar, é nada, é aquele ventinho que sai em choro quando se vira a boneca de cabeça para baixo. Se for boneca de pano, o dentro é pano como o pano de fora, só que maçarocado. Qualquer um sabe, qualquer um acorda um dia com vontade de ver o lado de dentro de uma boneca e pega uma faca na cozinha ou a tesoura do colégio. E logo fica evidente que o dentro da boneca não pode ser só isso.

No trabalho da Lia, o dentro das coisas aparece em cetim, pelúcia, seda, espuma, em qualquer pano felpudo, em um monte de cores e tatos. Ela aquece o afeto que mora no interior das coisas e delicadamente o mostra aos olhos de fora. E se a memória não lembra desse afeto, não tem problema, o afeto é criado. Como nos vasos de cabeças de bonecas: a Lia abre a cabeça das bonecas, enche o vazio das cabeças com terra e planta lá dentro. Uma planta em um vaso, sem dúvida. Ou o afeto crescendo para fora, inventado.

Mas o lado de cá nem sempre é bonito. Tem feiúra e sujeira e um monte de coisas que a Lia chama brutas. No calendário de bonecas, por exemplo, tem cada boneca feia, cada boneca horrorosa, tem boneca que só é boneca porque a Lia chamou de boneca e colocou junto às outras. Ela disse, isso é bruto e feio mas é uma boneca. E depois morreu de vergonha. Ou nem tanto: porque a boneca horrorosa e aquela que a Lia se assusta e diz, mas que boneca vuduzenta, todas elas fazem o calendário, dia a dia. A Lia não esconde nenhuma, ela sabe que para achar o lado de dentro, esse lado de cá, ela tem que mostrar o interior por inteiro.

Trezentos e sessenta e cinco dias, então, e mais a metade disso para mostrar um trabalho que nasceu junto com a Lara. A Lia disse, a Lara o dia inteiro e de noite a minha boneca. E era assim que fazia: quando a Lara dormia, ela fugia para o atelier e fazia uma boneca com o material que tivesse à mão, panos e trapos, sobras de trabalhos antigos, trabalhos antigos que desfazia e montava de novo, na boneca. E às vezes ela caprichava e a boneca saía linda, às vezes ela caprichava mas a boneca saía bruta, às vezes ela não tinha a menor paciência e a boneca saía como saía.

De guardanapo, se a Lia estivesse em um restaurante. O momento da boneca era o momento do dia em que a Lia era só dela. E não era um momento tão longo assim, era só o tempo de uma boneca. A minha boneca, ela diz, feita na buena, sem qualquer pretensão a não ser esta, a de ser uma boneca momento, um momento prazer, um pedaço quieto, o dentro de alguma coisa que ela ainda nem sabia o que era.

Era um calendário: segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo. E segunda, terça, quarta, e de novo segunda, terça, quarta e segunda e terça e quarta e quinta e sexta, e assim em todos os fins de semana de um ano inteiro e mais a metade de outro, diariamente. Em cada dia um afeto, um afeto puxado para o lado de cá, a formar fileiras de semanas todas elas absolutamente singulares. Um calendário de bonecas feito de dias cuidadosamente anotados, de afetos aquecidos e preservados na memória.
A Lia lembra do dia em que foi arrumar as bonecas de uma semana e só achou seis. Como assim, ela pensou, e contou as bonecas de novo e de novo só achou seis: a quinta-feira faltava. E não é que tivesse perdido a boneca no meio das outras, ela esquecera de fazer a boneca da quinta-feira, a quinta-feira daquela semana simplesmente não tinha a sua boneca. E, sem ela, a quinta não existia.

A Lia ficou aflita demais: como é que se pode esquecer um dia. E algumas semanas depois a mesma coisa aconteceu, só que desta vez foram a terça e a quarta-feira que faltaram. E a Lia sentiu que não podia fazer nada além disso, nada além de se afligir com os vazios que começavam a aparecer no calendário.

Ou não: poderia muito bem ter feito umas tantas bonecas a mais e as colocado sobre os dias vazios, assim como poderia ter costurado uma depois da outra e simplesmente guardado todas em um mesmo saco, sem a fita grudada no pé ou nas costas identificando o dia de hoje, a quinta-feira passada, o terceiro domingo de março. Poderia muito bem ter feito isso, mas não o fez.
Fazer bonecas, qualquer um faz. Mas e os dias, quem é que os pode inventar.


Constança Ritter
março 2000