texto de Maria Helena Bernardes

Toda a representação é reapresentação de algo conhecido, ensinou Aristóteles, em sua Poética, defendendo o direito da arte à imitação. Em outras palavras, é o deslocamento de um objeto, figura ou cena de seu contexto original que permite à arte gerar conhecimento. Transpostas de seu ambiente, insistiu o filósofo, até as coisas repulsivas ou deformadas se tornam interessantes, mencionando a serenidade com que admiramos um cadáver representado em uma pintura. Relembrar o ensinamento de Aristóteles faz com que a invenção da apropriação, bem mais recente, soe como necessária redundância milenar.

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No sítio arborizado, onde ficam sua casa e ateliê, Lia Mena Barreto fala sobre a recepção pública de seu trabalho, dizendo que o termo “perversão” é frequentemente associado a seus procedimentos e escolhas artísticas. Durante muito tempo, a expressão a desagradou porque sugeria maldade. Mais recentemente, porém, passou a admiti-la ao falar de seu trabalho.

“Eu perverto, sim, o significado das coisas: um brinquedo é um objeto inanimado; eu injeto calor e ele se move, toma vida; eu corto a cabeça dele, e o ar, lá de dentro, é liberado, ganha o espaço”. Complementou: “perverto o significado da boneca quando a retiro do contexto da infância e a trago para o mundo adulto do artista”.

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Há os que manifestam repulsa diante dos trabalhos de Lia; outros, indignação; outros, ainda, vêem acionada a curiosidade mórbida, como pode ocorrer nas casas de espetáculo e em algumas sessões de cinema. Há quem desfrute de seu conteúdo filosófico e estético, como pode acontecer em museus e bibliotecas. Há os que despertam para um terror metafísico, como ocorre nas igrejas e nos cemitérios. Há, porém, os que neles vêem mecanismos – como se passa nas salas de cirurgia e nas oficinas de reparos –, deixando-se encantar por seu poder de animar o inerte, de libertar o ar do interior dos corpos, de transformar o plástico em pasta, em cinzas ou, dele, fazer brotar raminhos de avenca. Como Lia. Cada um, cada um.

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Como crianças aterrorizadas pelas sombras na parede do quarto, trememos diante do que possa haver de realidade na representação do mal. Certas coisas, aprendidas na infância, convêm levar para toda a vida.

Maria Helena Bernardes, março de 2009.