Texto de Maria Cristina Ferrony


  • Da transvaloração, das hecceidades, do simulacro, do humor, do devir-criança


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Carrinho de Boneca” – 1993

Lia Menna Barreto nasceu no Rio de Janeiro e atualmente reside e trabalha em Eldorado do Sul – RS. Tem formação em Desenho – Bacharelado pela UFRGS em 1985. De 1993 a 1994 recebeu bolsa de estudo pela “International Fellowship in the Visual Arts” em San Francisco (Estados Unidos), concedida pela America Arts Aliance, Stanford University. Já participou de inúmeras exposições coletivas importantes no Brasil e no exterior (EUA, México, Cuba, Colômbia, Alemanha, França, Portugal, Áustria, Suíça) e também já realizou várias individuais em Porto Alegre - no MARGS, na galeria Arte e Fato, na Bolsa de Arte, no Torreão, no Galpão A7 do Cais do Porto, no Museu do Trabalho e recentemente no Subterrânea; no Rio de Janeiro - na Thomas Cohn Arte Contemporânea e na Galeria Laura Marsiaj; em São Paulo - na Galeria Camargo Vilaça e na Galeria Baró Cruz; em Belo Horizonte - na Galeria Celma Albuquerque e em Lisboa/Portugal na Galeria Pedro Cera. Recebeu prêmios em 1993/94 - International Visitor Program - Mid America Arts Aliance - Stanford University, California, EUA e em 1988 no Salão Nacional da FUNARTE, MAM - Prêmio Aquisição - Rio de Janeiro. Desde o final dos anos 80 seu trabalho tem sido reconhecido pela crítica especializada em arte. Já participou de importantes salões de arte e bienais no Brasil e no exterior, destacando-se a Sexta Bienal de la Habana - Cuba, a I e a IV Bienais do Mercosul em Porto Alegre e a Bienal de Los Angeles, Iturralde Gallery - USA. A obra “Carrinho de Boneca” faz parte da série de objetos compostos com bonecas que Lia Menna Barreto vem realizando desde o final dos anos oitenta, paralelamente a outras abordagens.

Silêncio... E então alguns risos involuntários que brotam como a tentar afastar algum sentimento malévolo inadmissível no campo idílico do reino infantil. Universo sagrado da inocência, a esfera da criança é lugar de culto, e concentra um ideário de formas e arquétipos decalcados de fábulas e lendas pueris consagrados pelo imaginário coletivo. Como e qual o contexto em que a criança e toda a maquinaria que a acompanha foram colocados nesse reino de pureza é algo interessante de se pesquisar, mas o que se sabe, ao entrar em contato com uma obra de Lia Menna Barreto que pertença à fase das bonecas, é que esse reino é nitidamente profanado.

A obra “Carrinho de Boneca” foi construída em 1993. É uma montagem que incorpora partes de um boneco desmembrado a um carrinho de bebê de brinquedo. Os objetos foram fundidos numa espécie de corpo deformado revestido de tecido amarelo com estampas coloridas. Segundo Carlos E. Uchôa Fagundes, historiador e crítico de arte, trata-se de “um de seus trabalhos mais desconcertantes, em que aglutina um bebê a seu carrinho num só objeto, despejando sua ação corrosiva sobre a dupla significante carrinho-bebê, consagrada pelo hábito” (1995). Menna Barreto promove um deslocamento de significado dos objetos na relação que estabelecemos com eles habitualmente, gerando um outro corpo transvalorado.

Segundo Deleuze e Guattari (2008) um corpo não se define por sua forma, nem como substância ou sujeito determinados, nem pelos órgãos que possua ou função que exerça. No plano de imanência1, o corpo se define pelo “conjunto dos elementos materiais que lhe pertencem sob tais relações de movimento e de repouso... ...e pelo conjunto dos afectos intensivos de que ele é capaz sob tal poder ou grau de potência” (op. Cit., p. 47). Um corpo é uma hecceidade2, individuação sem sujeito, é desejo. É devir. O carrinho compõe-se com o bebê de brinquedo. Tornam-se inseparáveis nesse corpo-devir.

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Na aproximação com a obra o espectador é acometido por sentimentos controversos, aversão a se cruzar com admiração, incompreensão, identificação, negação, espanto e uma certeza: a da captura. A indiferença é algo muito raro nesse acontecimento. Essa estranha sedução que não se explica, não se evita, embora saibamos que irá nos arrastar às duras camadas do mais trágico em nós. Ali onde ficam expostas nossas zonas nevrálgicas que costumamos manter cobertas na maior parte do tempo, numa espécie de anestesia. No auge dessa exposição de sentimentos intensos somos absorvidos pela obra, sem resistência alguma, e nos deitamos a lhe render louvores por sua incompreensível beleza.

Uma beleza inexplicável, como a que percebemos em “Uma Canção Desnaturada3, uma composição musical que se instala à força nos domínios de nossa alma centrada, provocando imenso desconforto. Quase nunca cantada sem arrancar lágrimas convulsivas de seus intérpretes e ouvintes que, ainda assim, corajosos, preferem deixar-se afetar por lhe reconhecer como uma obra de arte grandiosa. O transbordamento do trágico a nos convidar aos divinos estados de estase primitivo que apenas experimentamos sem pudores através de sua manifestação na arte. Liberta de qualquer juízo de valor, a arte se constitui naquilo que é “absoluto ultrapassamento”4 – o infinito de Blanchot. É nesse confronto que nos apercebemos de que em nada nos interessa uma vida apática, vazia de sensações, de lutas diárias sangrentas, das quais podemos sair vencedores ou perdedores. É a necessidade atávica do risco que deliberadamente experimentamos no envolvimento com o trágico da obra.

Arthur Danto alerta para a questão de que a obra de arte muitas vezes cumpre funções úteis, didáticas, educativas, expiatórias etc, o que aparece de forma muito evidente em determinados períodos da história da arte, e isso conflita com a noção de distanciamento psicológico, que sugere que a obra de arte é um objeto diante do qual apenas uma atitude estética seria apropriada (DANTO, 2005). Mas como evitar que sejamos de tal forma envolvidos por pulsões interpretativas disparadas, inadvertidamente, no atravessamento com determinadas obras de arte potencialmente fartas na condução de significados?

          Há uma segunda via pela qual é preciso liberar o sentido do que ele não é, uma via que requer um novo ponto de partida. A doxa5 tematiza uma profundidade do sentido, cujo valor estaria no fato de ele ser penetração na substância das coisas, e se transportar ao cerne da realidade (WAHL apud ALLIEZ, 2000, p. 123).

“Sentido” – é o que escapa aos domínios da realidade dos corpos, dos fatos e das idéias formadas a partir das tematizações da doxa. O sentido percorre outros domínios, particulares daqueles que os constroem. E embora o sentido, enquanto ser incorpóreo, não tenha sentido algum que possa compor uma realidade, “entidade não existente”, segundo DELEUZE (1968), a composição plástica, ou seja, a materialidade dessa obra de Menna Barreto, dificilmente se desvincula de sentidos que lhe são atribuídos (justapostos) involuntariamente pela doxa e que se inscrevem como discurso lingüístico trazendo postulações éticas que não se sabe bem à que posição se alia, à quem denuncia, à quem expõe, à que vem, se quer dizer algo, enfim, o insuportável atrelado à vida mesma em toda a sua debilidade. É então que, pra efeito de distensão moral, a arte se reveste de puro simulacro, e sua apreensão assume o que faz o homem, após resistir ao mais pungente espetáculo, ele “sorri”. Mas nunca, num primeiro acercamento, essa obra de Lia Menna Barreto será objeto de uma especulação meramente estética, a não ser talvez e, ironicamente, por uma criança que, como o “Dionísio” de Nietzsche “eleva a potência do falso a um grau que se efetua não mais na forma, porém na transformação – ‘virtude que dá’, ou criação de possibilidades de vida: transmutação” (DELEUZE, 1997, p. 121).

          O simulacro inclui em si o ponto de vista diferencial; o observador faz parte do simulacro ele mesmo, que se transforma e se deforma com seu ponto de vista. Em suma, há no simulacro um devir-louco, um devir ilimitado como o do Filebo6 em que “o mais e o menos vão sempre à frente”, um devir sempre outro, um devir subversivo das profundidades, hábil a esquivar o igual, o limite, o Mesmo ou o Semelhante: sempre mais e menos ao mesmo tempo, mas nunca igual7 (DELEUZE, 1968, p. 298 – Trad. minha).

A criança por si é animal, instinto, o mais puro “ser de sensação”, que não distingue “realidade” e “fabulação”. Nessa relação anti-hierárquica a fabulação por vezes toma o controle e então, pura criação, tudo é permitido. A subversão infantil, a “Potência Positiva da Máquina Dionisíaca dos infantis” a afirmar as Heterogeneidades, Divergências e Dessimetrias dos simulacros levando-os a positivar suas “Potências de Fantasmas e a fazer as suas próprias Diferenças, enquanto Semelhanças Abolidas” (CORAZZA & TADEU, 2003, p. 85). Um brinquedo destruído ou transformado em outra coisa por uma criança, num genuíno gesto do exercício de liberdade sobre o universo matérico que lhe é admitido, não é motivo de estranhamento no mundo adulto como o é a insólita obra de Menna Barreto. Vemos nesse gesto da criança a brincadeira, bagunça, “maus” modos, curiosidade, irresponsabilidade, criatividade, alienação e, o que talvez mais aproxime esse ato do reino adulto, uma expressão de “humor”. Talvez o único elemento ainda cultivado simultaneamente nesses dois mundos tão distantes. Na perspectiva da criança, todavia, o que compreendemos por “desarranjo”, “descaracterização”, “deformação”, é sempre e tão somente “descobrimento”, “invenção”, “criação”.

Quando elegemos o “humor” como a sensação que irá traçar o percurso da elucubração da obra, nos reconciliamos com a ordem estabelecida do inteligível que repudia o estranho e o desordenado principalmente no que se refira a objetos sagrados representativos do vulto humano e tanto mais ainda quando o objeto em questão está carregado de sentidos emotivos. Abandonamos, portanto, a esfera tensa do evocativo e dos princípios e das causas e logo acedemos à arte dos efeitos e das conseqüências. “O humor é atonal, absolutamente imperceptível, faz alguma coisa fluir. Está sempre no meio, a caminho. Nunca retrocede, está na superfície: os efeitos de superfície, o humor é uma arte dos acontecimentos puros” (DELEUZE, 1998, p. 82). E é na esfera do humor, da ascensão não-valorativa e não-crítica da superfície, da ligeireza, que, libertos do juízo, aderimos ao estado de fruição estética, ao “acontecimento puro”.

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Da obra “Ursos com bonecas” - 1993-1994 “Boneca dorminhoca” - 1993


É nesse estado que podemos nos deter na delicadeza do processo criativo de Menna Barreto que, a semelhança das zelosas artesãs de bonecas de pano, trata os objetos que cria como filhos seus e do mundo, como filhos da terra e do cosmos. Como hecceidades que são. A seriação que ocorre em algumas de suas obras, antes prolifera as famílias, as populações, as multiplicidades, as histórias, os segredos que habitam os objetos individuados que cria.


          “Criando surpresas e perguntas mudas”...... Guardando ao mesmo tempo a beleza vistosa e Kitch dos bonecos e a perversidade da criança que destrói seus brinquedos, arrancando e torcendo olhos, braços e cabeças de bonecas, a obra trama desejos intuitivos e inexplicáveis do observador. Mais do que isso, fala do processo vivencial da artista, de uma certa “persona” que ela incorpora para fazer seu trabalho - esquecendo a boneca como objeto de afeto e organizando-a em série, criando relações formais e espaciais. (FAGUNDES, 1993)

Num devir-criança, a artista-artesã Lia Menna Barreto não quer imitar a criança, resgatar a criança que foi, através da memória, “(o) devir é uma anti-memória” (DELEUZE & GUATTARI, 2008, p. 92). Antes quer desterritorializar-se em uma linha de fuga de “infância” sem início nem fim, que só cresce pelo meio, como o rizoma. No devir-criança o artista ganha asas que o impulsionam a ultrapassar a terra e penetrar o cosmos. A artífice de sonhos, ao mesmo tempo que se despoja de suas figuras românticas renunciando às relações de afeto com os materiais, coexiste com “uma” criança que a faz saltar e dançar. Não poupa as expensas necessárias à criação de suas obras, não se detém e nem recua quando se depara diante das contingências advindas do repositório sentimental. A artífice de sonhos cantarola... qual uma criança, para afastar o medo.

Maria Cristina Ferrony, 2009











REFERÊNCIAS

ALLIEZ, Éric (org). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000.

BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita – vol 1 – a palavra plural. São Paulo: Escuta, 2001.

CORAZZA, Sandra & TADEU, Tomáz. Composições. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia da arte. São Paulo: Cosac & Naify, 2005.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôscapitalismo e esquizofrenia, vol. 4. Rio de Janeiro: Editora 34, 2008.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 2007.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.

DELEUZE, Gilles. Logique du sens. Paris: Les Editions de Minuit, 1968.

DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998.

FAGUNDES, Carlos E. Uchoa. Menna Barreto brinca com a perverção. Folha de São Paulo, São Paulo, 9 de dezembro de 1993.

FAGUNDES, Carlos E. Uchôa. Lia Menna Barreto e a ordem oculta do mundo. In: Salão Arte Pará, 14, Belém, 1995.