texto de Carlos E. Uchôa Fagundes Jr.


MENNA BARRETO BRINCA COM A PERVERÇÃO

"Criando surpresas e perguntas mudas"...... "Guardando ao mesmo tempo a beleza vistosa e Kitch dos bonecos e a perversidade da criança que destrói seus brinquedos, arrancado e torcendo olhos, braços e cabeças de bonecas, a obra trama desejos intuitivos e inexplicáveis do observador. Mais do que isso, fala do processo vivencial da artista, de uma certa "persona" que ele incorpora para fazer seu trabalho - esquecendo a boneca como objeto de afeto e organizando-a em série, criando relações formais e espaciais. Bolas coloridas e partes de boneca se juntam em "Boneca Acrobata". Em "Ordem Noturna", Lia permuta partes de bonecas com corpo de pelúcia, resultando em aleijões que lembram o gosto pelo grotesco nos circos ou mesmo em cortes antigas, onde anões deformados eram ciosamente mantidos para deleite geral. Para a artista, essas deformações lembram a ordem oculta do mundo, a ordem noturna.
Através dessa provocação misteriosa que as obras incutem no espectador - jogando com seus desejos e abjeções, e ao mesmo tempo profanando e ressacralizando o universo intocável da criança-, Menna Barreto mostra o embate e o dilema do artista.
Consta que em lendas antigas o mago adquiria seus poderes geralmente pela perda de algum órgão (o aleijão). Uma rainha do Egito teria arrancado um olho de seu filho para dotá-lo de poderes mágicos.
Assim o artista perderia alguma coisa também, abandonaria uma forma "inocente" de ver o mundo e ganharia a capacidade de lidar com uma outra ordem, reconstruindo-o. Como o acrobata, que desafia a lei da gravidade, o artista desafia a ordem natural das coisas, e, pela arte dá espírito a objetos tolos despejados na prateleira de uma loja de brinquedos." *



LIA MENNA BARRETO E A ORDEM OCULTA DO MUNDO

"O procedimento normal da artista é seccionar os bonecos, possibilitando novas e múltiplas montagens, como se operasse com a liberdade criativa da fábula, plasmando seus objetos de acordo com jogos lingüísticos, que têm uma ´narrativa´ paralela que é quase um chiste lingüístico. Bom exemplo é um de seus trabalhos mais desconcertantes, em que aglutina um bebê a seu carrinho num só objeto, despejando sua ação corrosiva sobre a dupla significante carrinho-bebê, consagrada pelo hábito.
O espaço condensado, que aglutina formas, criando objetos inesperados, age criticamente sobre uma equação perceptiva cotidiana, automática, de modo a revelar seu absurdo e estranheza. Com o mesmo humor bolas coloridas e partes de bonecas se juntam em Boneca Acrobata. Em Ordem Noturna, Lia permuta partes de bonecos com corpo de pelúcia, resultando em aleijões que lembram o gosto pelo grotesco nos circos ou mesmo em cortes antigos, onde anões deformados eram ciosamente mantidos para deleite geral. Para a artista, essas deformações lembram a ordem oculta do mundo, a ordem noturna, ou ainda o universo do não dito, dos automatismos perceptivos e das incongruências afetivas". **


* Carlos E. Uchôa Fagundes, Folha de São Paulo, 9 de dezembro de 1993, São Paulo-SP
** FAGUNDES, Carlos E. Uchôa. Lia Menna Barreto e a ordem oculta do mundo. In: Salão Arte Pará, 14, Belém, 1995.