texto de Fernando Cocchiarale

Peludos

A primeira mostra individual de Lia Menna Barreto no Rio de Janeiro, inaugurada em novembro último, revela mudanças significativas no trabalho da artista, cujo começo remonta à passagem da década de setenta para a de oitenta, no Rio Grande do Sul.
A arte dos anos oitenta caracterizou-se, por um lado, pela volta à pintura, sua tendência mais evidente e, por outro, pela busca da tridimensionalidade, embora de maneira diversa da tradição da escultura e da do construtivismo. Período de radicalização da crise determinada pelo fim do ciclo histórico das vanguardas e, portanto, da própria modernidade, a década passada alimentou-se da revisão, não apenas da Arte Moderna, como também de momentos da tradição que a antecedeu. O reexame do passado como alternativa à crise, nem sempre bem sucedido, foi marcado em sua primeira fase pela valorização excessiva da imagem e da dimensão estritamente artesanal da leitura, como uma reação anti-intelectualista ao rigor da Arte Conceitual que sacrificava a corporeidade da obra em nome da idéia. Alguns artistas empenhados nessa procura compreenderam posteriormente a necessidade de formularem seus projetos não apenas ao nível dos resultados - imagem - ou do privilégio à manualidade - artesanato - mas ao nível de sua materialidade; isto é, da consciência de que a fatura implica a elaboração de um método, sem o qual qual esta se torna uma prática desprovida de inteligência, restringindo-se ao mero exercício técnico.
É dentro desse quadro que se desenvolve a obra de Lia Menna Barreto, assumindo progressivamente, processos de fatura que sintetizam tradições diversas de operar no espaço tridimensional.
Há alguns anos a artista elegeu como matéria prima básica de seu trabalho a espuma, que, por sua maleabilidade e maciez, difere essencialmente de materiais resistentes como o mármore e o ferro, tão caros às tradições da escultura clássica e da construtivista, a despeito das diferenças fundamentais entre estas.
"É impossível separar o caráter orgânico das obras de Lia, de sua materialidade. Um nasce do outro simultaneamente. Os sólidos feitos quatro anos atrás resultavam de um processo nitidamente escultórico. Grossos blocos de espuma eram desbastados, esculpidos e, em alguns casos, recebiam em seguida uma coloração escura. A espuma, estrutura dos trabalhos, era apenas carne, sem ossos e pele, uma vez que não recebia revestimento. Daí, embora não aludissem a nenhuma forma viva identificável, eram inevitavelmente associados a organismos.
A nudez estrutural dos sólidos iniciais indicava, virtualmente, um dentro que ainda não existia, porque o trabalho se concluía na carne do material utilizado. As obras agora mostradas demonstram um amadurecimento das entranhas para a superfície das peças que atualmente possuem pele, sendo todas revestidas de tecidos diversos.
Não há no caso nenhuma alteração nos procedimentos escultóricos de antes, que continuam a desempenhar papel estrutural das peças. A novidade reside na adoção de métodos construtivos na feitura da superfície dos objetos. O revestimento da maioria deles resulta na costura de partes, cuja articulação se assemelha à idéia que os construtivistas estabeleceram a respeito da especialidade de seu processo em face da tradição da escultura: seu trabalho decorria da articulação de partes - o que se afastava das técnicas tradicionais desta última, aproximando-os dos métodos de construção da engenharia moderna".
A coexistência desses processos antinômicos de feitura e o uso superficial da construção - invertendo-a, uma vez que no construtivismo estrutura e obra identificam-se - singularizam os animais de Lia Menna Barreto. Sua aparência de brinquedos de pelúcia é estratégica. Ao contrário destes em que a pele é recheada, as obras da artista são carnações que determinam de seu interior a pele que possuem, numa síntese de posições paradoxais que pertecem ao âmbito da arte.

Fernando Cocchiarale


Fernando Cocchiarale
COCCHIARALE, Fernando. Lia Menna Barreto. Galeria: Revista de Arte, São Paulo, n. 23, p. 82, 1990.